sábado, 30 de maio de 2009

Apelo maldito

O despertador desperta, como de costume, José Moureiro, o leiteiro, às 4:00 da manhã. José levanta cotidianamente pelo lado esquerdo da cama, esbarra o dedinho na madeira solta do piso e sufoca um grito. Vai à cozinha e prepara seu café com pão tradicional. Se arruma e pega o ônibus das 5:10. Chega no trabalho atrasado, e mais uma vez tem que correr para não perder o "cafézinho do dia".
Às 6:00 lá está o leiteiro na porta de Dona Josefá com o leite, e depois na casa de Pauline - advogada nobre que sempre o espera na porta de sua casa para não se atrasar no trabalho. A manhã segue rápida e miseravelmente igual. O trabalho de leiteiro acaba cronometradamente às 9:30 da manhã.
Começa agora a jornada "velhinhos". Todos os dias, do meio dia em diante, Moureiro toca piano em um asilo e ajuda no que for preciso todos os ali presentes. Uma forma de ganhar almoço, café da tarde, janta, biscoitos e carinho.
Chega na sua segunda jornada na hora certa. Come, ajuda Seu Isaias a ir ao banheiro e se limpar, toca piano, dá banho em Seu Luís, come, prova os biscoitos da Sra. Cake, come novamente e toca piano um pouco mais. Tudo exatamente igualzinho à vinte anos atrás. Nada mudou. Exceto a velhice.
Volta para casa no ônibus das 21:00. Toma banho e deita-se do lado direito da cama - como acostumou-se a fazer desde a adolescência. Faz algo de novo em seu dia rotineiro: apela para que alguma coisa mude em sua vida. Adormece.
O despertador desperta, milagrosamente, José Moureiro, o leiteiro, às 4:30 da manhã. José levanta, diferentemente das últimas duas décadas, pelo lado direito da cama. Não existe madeira solta deste lado do quarto, mas existe um abajur no qual o homem tromba e cai, quebrando a lâmpada do mesmo e a unha do dedinho que costumava esbarrar no piso todos os dias. Não consegue sufocar o grito e acaba por acordar a vizinha.
Depois de ter feito o curativo do dedinho e arrumado o quarto, sai, mal vestido para o trabalho, sem tempo para seu café com pão tradicional. perde o ônibus e tem que esperar pelo próximo. Chega no trabalho muito atrasado e perde o "cafézinho do dia".
Às 6:30 lá está o leiteiro esbaforido, mal arrumado e mancando na porta de Dona Josefá, que acabara de sair à porta para ver se o leite ainda não tinha chego, e depois na casa de Pauline - advogada nobre que sempre o espera à porta de sua casa para não se atrasar no trabalho e que já não estava mais lá porque esperou, esperou, se atrasou e o leiteiro não chegou. A manhã segue rápida e miseravelmente diferente. O trabalho do leiteiro acaba cronometradamente no momento em que, de tão casado por ter corrido em todas as entregas e não ter comido ou tomado café, ele deixa a última garrafa de leite cair ao chão. Ele já não é mais leiteiro. É desempregado.
De tão apavorado, não vai para sua jornada "velhinhos". Compra um lanche qualquer e almoça. Enquanto isso todos no asilo se entristecem e se preocupam com o que terá acontecido ao bom José. Seu Isaias, sem ajuda de ninguém vai ao banheiro, cai da privada e quebra a bacia. Seu Luís vai tomar banho e deixa o shampoo cair em seu olho. Sra. Cake joga os biscoitos fora e se deprime.
Moureiro, o ex-leiteiro passa o dia procurando emprego, mas não encontra nenhum. Ninguém confiou nele por estar fedendo suor, todo desarrumado e ainda por cima mancando. E outra coisa, ele foi leiteiro por vinte anos, ficou tão triste com a demissão que não se via em condições de ser outra coisa.Volta para casa no último ônibus que tinha, toma banho e deita-se do lado esquerdo da cama. Quando já ia adormecendo vira-se para o mesmo lado esquerdo (finalmente algo do costume!), mas tristemente acaba caindo da cama. Acorda e se martiriza pelo seu apelo maldito. Adormece novamente.

by Luiza Chiesa (foxy lady)

Eu acredito em você beija-flor!

Ele voa. Sei disso porque ele está no céu, em algum lugar à alguma distância daqui, na companhia de alguma flor que provavelmente nunca verei, enquanto eu me deito sobre esta ávore antiga, amiga e morta coberta por aconchegantes algodões tingidos e pluma ensacada. De certa forma, a certeza de que me deito sobre tudo moldado pelo homem, inclusive minha vida - da qual faço parte apenas por estar deitada nela - se tornou constante nos últimos segundos.
Me deito sobre o casamento, sobre a tolice, sobre o telefone quebrado, sobre a toalha lavada, sobre Camille Cloudel, sobre o boneco sem nome, não me deito sobre a sociedade pois já estou deitada sobre a tolice, e não me deito numa mesma coisa duas vezes. Me deito até sobre os grandes impérios e os gênios.
Só sobre o beija-flor que não me deito.
Ele voa.Sei disso porque ele está no céu, em algum lugar à alguma distância daqui, na companhia de alguma flor que provavelmente nunca verei, enquanto eu não me deito sobre ele, nem sobre a flor. São essas as regras, não se deita sobre aquilo que não se conhece. Você se deitaria sobre um Shmellowpango?
Viu? Não se deitaria. Por quê? Porque não os conhece. Não fique triste. Eu sei tanto de flores e beija-flores quanto você sabe de Shmellowpangos. E isso é perfeito. É exatamente para isso que vivemos. Olha, se soubéssemos tudo que a humanidade quer saber, as coisas perderiam a magia do incerto, descobriríamos as fadas e Mussoline se deitaria sobre as sereias.
A sabedoria não está no conhecimento absoluto, e sim nos momentos em que fechamos os olhos para deixar que tudo se esconda e poder saborear uma surpresa. Não quero saber tudo sobre flores e beija-flores. Não quero me deitar e ficar acima de ambos.
Quero apenas saber que quando o botão de uma rosa murcha, é melhor cortá-lo, assim a roseira me trará mais botões e mistérios (como agradecimento?).
Basta acreditar que o beija-flor viverá mais um dia, que ele virá me ver, quem sabe às 3:00 da manhã, e que quando isso acontecer, poderei ver suas asas formando dois números oito no ar.Basta pensar que um segundo encerra muitas vidas, e que nesse segundo eu direi, ou pensarei: "Eu acredito em você beija-flor", e ele voará com seus mistérios.

by Luiza Chiesa (foxy lady)

domingo, 17 de maio de 2009

E se fosse uma comedia romantica?

Seria primeiro dia de aula e a gente estudaria no mesmo colégio, claro. E no mesmo corredor, óbvio. Aí eu passaria, toda fofinha, de vestidinho florido em rosa, tomara que caia e cheio de lacinhos, e preocupada com a escola, claro. Você passaria, todo gato, rodeado de meninas, esbarraria em mim, meus milhares de livros cairiam e nesse momento começa a câmera lenta: a gente se abaixa, vai, devagarzinho, pegando livro por livro, papel por papel, olhar fixo (estilo olho no olho), boca semi-aberta pra demonstrar aquele desejo e aí a câmera volta ao normal, eu fico sem-graça, você fica apaixonado. Me dá meus livros, me pede milhares de desculpas e me pergunta em que sala eu estou e se pode me recompensar sob forma de diversão no almoço. Almoçamos juntos, viramos amigos, namorados, casamos e temos vários filhinhos.

Mas foi tudo mais simples. Você chegou, disse oi, pegou meu telefone, me ligou e a gente saiu.