sábado, 3 de outubro de 2009

O cabresto

"_Se você não quer se matar e nem massacrar todos ao seu redor _ Diz o comerciante.
_Não quero _ Diz o burro.
_Se você não conseguue matar nem uma mosca sequer e fica se revirando todo para ver se ela toma a iniciativa de sair _ Volta o comerciante.
O burro olha para si mesmo e se depara revirando o rabo para afastar uma mosca:
_Não é que eu sou assim mesmo? Mas temos que admitir que matar mosca não é nada fácil... elas fogem! _ Retruca trsitemente.
_E se você deixa os outros montarem em você como se você fosse um burro de cargas, e até se esqueceu que a palavra não existe...
_Eu sou um burro de cargas! _ Exclama o burro.
_E se você é todas as opções acima e mais algumas, eu tenho a sua solução. Adquira já o seu próprio cabresto. Ele é de graça e ainda vem com opções de cor. É a única maneira de não sofrer. Você só verá um caminho à seguir. E para facilitar ainda mais, nós escolheremos o seu caminho. Você não decidirá nada, não verá nada além do que te mostrarmos, e nem ficará com a impressão de que estamos sugando sua mente. Continue neste canal e adquira também o DVD Minha vida com o cabresto.
_É a minha salvação! _ Concluiu o burro."

Se me perguntassem o nome desta cena, eu diria Cena do cotidiano. Todos os dias, bilhões de pessoas ligam a televisão e descobrem as maravilhas do cabresto. Todas as manhãs as pessoas, ainda com o cabresto do dia anterior, saem às ruas para servir de burros de carga. Todos os dias os burros de carga se contentam em afastar momentaneamente as moscas. As moscas no meio do mundo de metáforas que estou fazendo podem ser aqueles problemas incômodos, que têm como prazer nos fazer lembrar que eles existem, os fantasmas do passado, os traumas. Todos os dias eles fazem tudo sempre igual, e aprendem que isso é vida.
Mas o assustador não são as pessoas no cabresto. São aquelas que não conseguem se cegar. São os motivos que deixam o cabresto tão atraente e inevitável. Vamos aos motivos.
1994. Leste Central da África. Rwanda. Naquele ano, em cem dias, foram mortos aproximadamente 800.000 pessoas num massacre histórico, com estupros e torturas partidos da comunidade vizinha a Rwanda, e, em parte, do próprio povo de Rwanda. Hoje os sobreviventes desse massacre tem que conviver dia-a-dia com os assassinos de suas famílias como bons vizinhos, e perdoá-los.
Esse acontecimento não teve repercursão na mídia e somente quinze anos depois foi feito um filme sobre o ocorrido. Queria o povo de Rwanda ter cabrestos.
Em São Paulo, Brasil, as favelas invadiram 950 áreas verdes, deixando a cidade mais árida. Foi a primeira vez que ouvi falar da miséria interferindo diretamente no clima. E mais uma coisa: essas favelas são cadastradas, como se fossem uma nova comunidade. Sem planos para melhorar isso. Não pense que acabou: essa área pode ser maior, afinal, a prefeitura diz que a Heliópolis, na zona sul (a maior favela de todas) não passa de "uma ocupação pequena debaixo de uma ponte na Marginal Tietê". É muita trsiteza para os olhos. É quando ligamos a televisão.
O ser humano criou um mundo próprio que nós não suportamos viver. Nós trilhamos um futuro que não aguentamos seguir. Quem consegue vai a psicólogos, psiquiátras, apela para os pulsos, adquire um cabresto e fica mais tranquilo, como se tivesse feito o suficiente, até liga a televisão. Mas e o resto?
A televisão é uma propriedade privada - no duplo sentido da palavra - e é controlada pelo interesse de quem a lidera. Não somos nós que escolhemos o que vamos assistir. E quem escolhe, escolhe apenas algo que no fim a beneficiará.
A telinha mostra aquilo que o meio em que ela vive acha de bom tom passar, aquilo que acalma um pouco a alma, afasta momentaneamente as moscas.
A televisão em si é algo incrível. Pense bem: uma tela que passa coisas que aconteceram ou estão acontecendo em qualquer canto do mundo, nos informa assuntos mundiais, nos deixa ligados com as mais diversas informações.
Só que não é bem assim. Apenas porque quem manuseia a tv acaba, em sua maior parte, escolhendo manipular a mente de quem a assiste. Não é do interesse das multinacionais divulgar uma passeata contra as multinacionais. Consequência: ninguém fica sabendo. Ninguém ficou sabendo! Essa passeata aconteceu este ano e ninguém ficou sabendo!
A televisão é como o capitalismo: a teoria não é ruim, só que na prática ela é governada por homens. Ela nos manipula. Nos põe cabrestos. E nós? Aceitamos! É mais fácil assim.

by Luiza Chiesa (foxy lady)