segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A Narradora

_Dê-me a faca. Eu a enfio em meu coração e você fica com o sangue.
_Trato fechado.
A narradora dessa velha história não narrará os minutos que se sucederam. Depois ela guardou o sangue em uma caixinha velha de madeira e ficou esperando o líquido virar sólido. Ela se chama
Françoeire.A garota não sabia se estava triste. O garoto não sabia se estava morto. Os dois sentiam muito mais o vento que bagunçava/ balançava/ baforava os cabelos.A cena se passou em um bosque, no meio do nada, na presença do sol frio de inverno. Agora caem lágrimas dos olhos de Françoeire. Ela não gosta de lembrar. Na hora não tinha certeza se estava triste. Mas nesse instante ela escreve, e chora, e escreve que chora. E nesse instante ela sabe o que ele não sabia: ele está, e estava morto.
A narradora dessa velha história vai parar de escrever um pouco. É preciso força para cavar a terra da mente e desenterrar uma memória antiga.
Foi numa tarde de terça-feira. Estava quase anoitecendo. O encontro foi afetuoso. Estavam tentando aproveitar cada segundo. E os dois faziam isso muito bem.
Ele sempre disse que Françoeire tinha traços bem definidos. Ela sempre dizia que ele tinha uma voz definitiva. Dessa vez não precisaram dizer. Nunca precisaram , na verdade, e dessa vez não disseram.
Ele morreu sem agonia, nos braços de quem amava. Tudo era tão claro. Quer dizer, a vida nova viria depois de uma morte simples. O sangue seria para que a seiva da vida que se acabava não se acabasse também, apenas se solidificasse.
A narradora dessa velha história amava o primeiro ser dele, tinha medo que ele mudasse muito com aquela morte. Mas, se isso acontecesse, ela poderia mostrar a caixinha velha de madeira para o morto/vivo, e ele não perderia seu rumo nunca.
O que morria naquele momento, de qualquer forma, não era todo um ser, e sim a visão deste ser. Ele passava a ver tudo de uma nova forma.
Esse pensamento contentou Françoeire. Morria ali a inocência natural que as pessoas têm na primeira fase da vida, nos primeiros anos de existência, que ele chamou de infância.
A narradora dessa velha história o viu renascer pela primeira vez. Ela foi a única que viu e sentiu. Presenciaram essa cena também o bosque, o céu e o esquilo com a noz (sim, o esquilo com a noz, você também pode vê-lo, ele está quase escondido ali, no canto direito da imagem).
_Trato fechado.
Ele renasceu.
Depois, não foi como ela pensara. Tudo mudou, e não somente a visão das coisas. A percepção, a ação, a animação, tudo. A inocência agora não era nada além de seiva sólida numa caixinha velha de madeira. Não se podia reverter a morte. E a nova vida dele seguia. E o velho amor deles diminuia.
Em casos como este deveria ser possível remediar.
_Trato fechado.
Que tolice. E ela agora sofria, e não sua inocência, mas sua alma morria. E era tudo culpa dela. Sim. Ela. Françoeire. A narradora. Eu.
Nunca recuperei minha alma. Nem meu amor. E não recuperarei essas lágrimas sobre o papel. Coisas irremediáveis. Odeio todas elas. Pois é, esse não é mais um lindo conto de amor.
A narradora dessa velha história lamenta muito, muito mesmo.
by Luiza Chiesa (foxy lady)